[algumas semanas atrás]

algumas semanas atrás
depois de beber
muitas cervejas
olhando uma
mancha de água 
no piso de cimento
disse que a paixão
era uma miragem
só não sabia
que semanas depois
teria te achado,
meu deserto,
e a roseira floriu
como nunca
toda cheia de si
mas que 
outras semanas depois
limparia do chão
os caules secos
das flores que não
vingaram.

é lá pelas duas e trinta

é lá pelas
duas e trinta
de sábado
que eu pego
uma rabeira
no planador
que voa sendo
puxado por um
monomotor
passo pela
casa do vô
que virou prédio
e não existe mais
pelo Luso
[ah o Luso!]
não existe mais
a estação de trem
que decadência
a sorveteria
a casa de batidas
a Donnana
não existe mais
o Bauru Shopping
foi ampliado
construíram também
o Boulevard
o Jornal da Cidade
não entrega mais
a mercearia
virou estacionamento
a minha escola
virou academia
a cervejaria
virou igreja
o bosque
está fechado
a casa da minha amiga
foi alugada
nem a padaria
ficou igual
não achei o museu
o meu tio mudou
as ruas estão vazias
perdi a rabeira
e fiquei no chão.

natureza-morta

a jaqueta molda
o encosto da cadeira
e indica se está
ou não em casa
e ver o correr dos
dias percebendo
se o encosto está
livre ou coberto
me faz pensar na
sua pergunta
aquele dia, lembra? 
você leu os versos
dizendo que
meu corpo
não é
um rascunho
e daí perguntou:
então qual obra seria?
não respondi na hora
talvez porque meu corpo
assim como a jaqueta
é moldado em
versos antigos mas
daí vi uma pintura
o decalque de
uma natureza-morta
com o título
lembrando Ipanema
e pensei que
se o tempo não existisse se
as fronteiras geográficas
e o que diferencia
um dia do outro
se
nada disso existisse hoje
eu seria essa mistura
de pigmento e líquido
apontando para algo
que eu não sei
se vai acontecer
ou se já passou.

[cheia de armários]

cheia de armários
uma sala cheia
de pequenos armários
e eu abro todos
estou lá pra isso
abrir os armários
o que procuro?
uma jóia entre os
dedos um
elefantinho de
ouro com pedras
coloridas — o que
procuro?

o armário já
não está mais
aberto nem o
elefantinho entre
os meus dedos
um homem sem rosto
era você mas não era você
está em pé na porta e
fala comigo
um colar
agora tenho um
colar na minha mão
você sumiu ou
o homem sumiu
o colar sumiu e
o elefantinho também.

[herdei o jeito arredondado]

herdei o jeito arredondado
das letras
e a vontade de escrever
KISS ME
em caixa alta
no meio da página
com 450g de açúcar
numa calda em
ponto de pasta
com 1 colher de
manteiga que deixei esfriar
e derramei sobre
24 gemas passadas
na peneira fina
depois ao fogo
brando sempre mexendo
até despregar da panela
no dia seguinte
fiz bolinhas e passei
em açúcar peneirado depois
coloquei nas caixinhas
de papel que
enfeitei com um
pedacinho de cereja
um cravo
ou uma folhinha ou
deixei simplesmente
o que acumulou
sob as letras do
seu nome.

[o menino]

para o Joca

o menino levanta
a mão com quatro
dedos em riste
e o dedão escondido
na palma
foi seu aniversário
essa era a novidade
agora são quatro
dedos em riste
e só o dedão
escondido na palma
da mão
o menino não sabe
ainda quanto tempo
dura o tempo
nem o que são
minutos e horas
mas sabe de cor
o nome de espécies
extintas e me explica
as características de
cada animal
quais são carnívoros
ou herbívoros
em brinquedos de
plástico.

[vou fotografar as nuvens]

vou fotografar
as nuvens
achar animais
nas nuvens
um coelho talvez
talvez um touro
quero ver o
touro se transformar
em dragão
com um longo rabo
que se desfaz
se desfez
quero ver um
coração partido
que com o vento
se regenera
e quero ver
a massa densa
se dissipar
se dissipou.